Na última sexta-feira depois de vencer os estudantes pelo cansaço, a reitoria da UFPR aprovou o Ensino Remoto Emergencial que embora a universidade diga que não é EAD, tem um caráter muito parecido e pode abrir portas para essa modalidade na universidade. Os defensores do EAD da UFPR insistem em dizer que é opcional e que só vai aderir quem quiser. Pois bem, sabemos que não é essa a questão já que uma parcela muito grande de estudantes não têm direito de escolha, pois estão no momento passando por grandes dificuldades e não vão poder aderir ao ensino remoto por essas questões e não porque não querem.
Tendo em vista principalmente o caráter politico-ideológico desse sério ataque aos pilares da universidade publica, gratuidade, democracia e autonomia, o Centro Acadêmico Anísio Teixeira de pedagogia da UFPR produziu essa nota em defesa da Educação Científica e Nacional.
Reproduzimos na íntegra a nota.
Estudantes da UFPR em Defesa da Educação Científica e Nacional
Lutar contra o EaD é lutar contra a Privatização da Universidade Pública
Em um momento acirrado da situação política brasileira, em que a crise generalizada se aprofunda a um patamar sem precedentes, o povo como um todo tem sido compelido de forma oportunista a “se adaptar”, “se reinventar” frente aos problemas colocados. Aos estudantes, em particular, isso foi expresso no desonesto argumento que visa a implementação do EaD como forma de “defender o aprendizado em tempos de pandemia”, sustentado pelo então Ministro da Educação Abraham Weintraub. Está mais do que claro que o que de fato tem sido defendido pelo MEC está longe de ser o modelo de educação que interessa ao povo.
Na UFPR, diante da suspensão do calendário acadêmico a administração da universidade tem levantado, desde meados de março, a proposta de substituição das aulas presenciais pela modalidade remota. Rapidamente, a comunidade acadêmica, principalmente os estudantes, colocaram-se contra a adoção do ensino a distância tendo em vista seu prejuízo mais imediato: a inevitável exclusão de estudantes que não possuem acesso digital, esses que compõem uma parcela grande entre os discentes. Frente a isso, a Reitoria lançou um formulário online com o objetivo de avaliar o nível de inclusão digital dos estudantes. Após a tentativa inevitavelmente fracassada de fazer tal levantamento foi solicitado pela Reitoria que as instâncias departamentais, coordenadorias e entidades estudantis declarassem à administração seu posicionamento sobre a adoção de atividades remotas. Segundo o Reitor, das respostas recebidas, a maioria das instâncias discentes (38%) demonstrou contrariedade à implementação do EaD, tendo como um dos argumentos a exclusão digital que a medida provocaria; 30% desses posicionou-se a favor sem justificativa, e 31% optou pela abstenção, colocando diversas dúvidas e questionamentos.
Sendo parte das entidades que demonstraram contrariedade, viemos publicamente justificar e defender nossa recusa ao EaD como parte da luta intransigente pela defesa de uma universidade pública, gratuita, científica, democrática, autônoma e que sirva ao povo.
Ignorando a escancarada ineficácia do formulário realizado, a PRAE (Pro-Reitoria de Assuntos Estudantis) considerou válido o levantamento de dados onde 20% dos estudantes se declararam sem acesso aos meios virtuais. Em seguida, foi publicado edital para a disponibilização dos equipamentos necessários à “inclusão digital”, em número muito superior à oferta anterior ao período de pandemia. Não pretendemos questionar a comprovada importância do uso das tecnologias de informação e comunicação como complemento à educação presencial. Mas essa insistência por parte da administração da UFPR em substituir uma pela outra (presencial por virtual) traz à tona algumas questões: Por que a inclusão digital, antiga e justa pauta estudantil, só pode vislumbrar algum “avanço” justamente no período em que a nefasta proposta do EaD volta a bater em nossas portas? Por quais meios as universidades, que tiveram suas verbas congeladas desde a EC 95 e em seguida cortadas, angariaram fundos suficientes para conseguir tais equipamentos? Talvez recorrendo a recursos privados? Quais interesses estão por trás disso? Nenhum esclarecimento foi prestado até o momento em relação a origem destes computadores. Mas, apesar disso, é patente que essa oferta é bastante oportuna para suprimir o posicionamento de contrariedade dos estudantes, para apaziguar um terreno de disputa. Buscam às pressas uma “solução para nossas demandas”, como forma de demonstrar apreço pela democracia, enquanto reduzem grosseiramente nossas críticas a “falta de acesso digital” como se esse fosse o único problema levantado pelos estudantes nesse contexto e ignoram o posicionamento expresso pela maioria dos estudantes (38% das entidades consultadas). Nesse sentido, um aspecto que a reitoria tenta colocar em segundo plano é o interesse de empresas privadas, principalmente do ramo de tecnologia da informação, por trás da adesão ao EaD que, aliada a surrada verba e estrutura das universidades, resulta no cenário perfeito para a intensificação das parcerias público-privadas rumo à privatização. Inclusive essa relação é atestada pelo documento Um Ajuste Justo (2017) do Banco Mundial sendo defendida e prevista por Paulo Guedes, atual Ministro da Economia. Portanto, devemos ter clareza de que essa medida não é uma conquista verdadeira e sim uma armadilha desonesta! Não trocaremos nosso direito de estudar e aprender por uma falsa inclusão!
Além disso, devemos ressaltar que a falta de acesso digital, apesar de ser um problema relevante e que deve ser considerado, está longe de ser o principal dano na adoção desse modelo educacional. Há diversos prejuízos pedagógicos e políticos decorrentes da implementação do EaD como: a dificuldade de concentração dos alunos por meios virtuais; a falta de ambiente adequado ao estudo (especialmente no momento atual, em que todos estão saturados do ambiente doméstico); a sobrecarga para os professores, que em sua maioria não estão habituados com as plataformas; o completo esvaziamento e fragmentação da proposta pedagógica dos currículos, já que foram pensados para aulas presenciais em sua totalidade, enquanto nas propostas irresponsáveis colocadas pela reitoria o central é a “adesão e adaptação individual” independente do prejuízo que isso possa causar; bem como a completa exclusão dos alunos com necessidades educacionais especiais, que já enfrentam diversas dificuldades na modalidade presencial. Ademais, tal proposta ignora o caos causado pelo massivo aumento do desemprego e informalidade, pela generalização da miséria. Portanto, a implementação do EaD, modalidade que possui alta taxa de evasão1 poderia levar muitos estudantes a abandonar seus cursos e teria prejuízos irreversíveis na formação de todos aqueles que dessem continuidade por meio remoto.
Nesse sentido, um aspecto imprescindível a ressaltar é que essa modalidade de ensino desconsidera a natureza indissociável entre teoria e prática na fundamentação do conhecimento científico, bem como o papel das discussões nesse processo de elaboração. A substituição das aulas presenciais por atividades remotas resulta em uma formação aligeirada, pragmática, tecnicista e absolutamente insuficiente para a produção crítica da ciência, que vise a resolução dos problemas sociais mais profundos da população. Expressão disso é a ausência de cursos na modalidade a distância que sejam referência em grandes contribuições científicas, ainda que as matrículas em EaD correspondam a 23% das matrículas do ensino superior no Brasil2. Dessa forma, a implementação do EaD serviria também para intensificar o sério desmonte da ciência nacional – produzida majoritariamente pelas universidades públicas sob o modelo de ensino presencial – que já ocorre e mostra seus efeitos na pandemia. Os cortes na CAPES e CNPq, atrelados ao projeto de sucateamento aplicado há décadas nas universidades públicas, leva o Brasil a uma dependência cada vez maior da importação de ciência produzida nos países imperialistas. A ciência convertida em mercadoria motiva a extinção dessas bolsas de pesquisa para salvaguardar o lucro dos bilionários monopólios internacionais de pesquisa privada. O cenário brasileiro de falta de EPIs, de equipamentos para UTIs, a inexistente produção de testes e o verdadeiro genocídio chamado de crise sanitária é fruto também desse processo histórico.
Tendo em vista tamanhos danos e interesses envolvidos, podemos concluir que por trás da bravata de “temos que nos adaptar temporariamente, em caráter emergencial” reside uma grande ilusão (e em alguns casos o mais puro oportunismo). A tentativa de implementação da EaD – na forma de reestruturação permanente das políticas educacionais nos países não desenvolvidos – é um dos ditames do Banco Mundial e do FMI previsto desde o consenso de Washington, de 1989, e que é aplicado a conta-gotas no Brasil desde então, quando o EaD foi inserido na Lei de Diretrizes e Bases para a Educação (LDB 9394/96). A aplicação mais recente de tal proposta é a BNCC, que permite a substituição de 40% da carga horária no ensino médio regular e 100% no EJA do ensino presencial para EaD. Da mesma forma devemos lembrar da alteração de 31 de dezembro de 2018, na qual o MEC autorizou que todos os cursos de graduação do país convertessem até 40% da carga horária presencial para EaD3, medida que inclusive foi citada no parecer 05/2020 do CNE, onde o órgão lamenta a “a imensa ociosidade” na implementação. Portanto, por trás de tais medidas reside um anseio permanente e insaciável, não temporário. Esses fatos, junto ao recente encaminhamento do future-se ao congresso, tornam mais do que explícito o banquete que está sendo preparado e cozinhado em banho-maria pelo MEC para os tubarões da educação privada. Que passem fome! Não cairemos nessa balela proposta sob forma de “período emergencial”!
Tendo em vista todos os aspectos levantados até aqui é necessário destacar que, a finalidade de grande parte das reitorias das instituições federais de ensino em aderir ao EaD é somente “evitar” uma intervenção ainda mais escancarada por parte do MEC. Tanto é que, frente a baixíssima adesão das universidades públicas ao EaD, Jair Bolsonaro editou MP com o objetivo de extinguir a consulta à comunidade acadêmica e nomear interventores. Em resposta a isso houve ainda mais celeridade nos processos que visam a implementação do EaD. Ora, sabemos que de fato as ameaças à autonomia universitária agravam-se cada vez mais, mas submeter-se aos interesses privatistas impostos pelo MEC-BM para “preservar a autonomia” é igualar o significado de autonomia à verdadeira covardia subserviente. A autonomia que devemos exigir está intrinsecamente ligada à democracia universitária e não a essa caricatura infame. Não basta a lista tríplice, devemos lutar por verdadeiras eleições com paridade nos votos! Não bastam os conselhos universitários da forma como são, devemos exigir co-governo estudantil para que os estudantes – parte mais desatrelada dos interesses do Estado e numerosa na comunidade acadêmica – tenham poder de decisão sobre a própria educação. Não basta gerir parcialmente os recursos da forma como ocorre hoje, queremos que nossa verba não venha carimbada pelo MEC.
O desejo de acabar com a modalidade presencial de ensino tem também o objetivo de dificultar a organização dos estudantes e professores na transformação das universidades em trincheiras da luta de classes e defender o direito à ciência para o povo, tanto na educação quanto na saúde. Sendo assim, por parte dos estudantes, e deveria ser também das reitorias, não há razão para a defesa de “concluir o semestre a qualquer custo” para garantir, como única alternativa, que alguns no fim desse período obtenham seus diplomas sem nos preocuparmos com a qualidade da formação que será ofertada. Além disso, onde houver alguma adesão ao EaD por parte dos estudantes deve ser assegurado que as aulas presenciais tenham reposição integral a todos que não puderem ou não quiserem concluir seus cursos sob tal modalidade. A universidade não é um centro de distribuição de certificados e sim um local que deve nos proporcionar o contato com o acúmulo histórico da humanidade, com outras pessoas, com a pesquisa, com debates políticos sérios, com formulações de teorias, de ciência e tecnologia que atendam as carências do povo.
As dificuldades desse período não devem ser vistas como empecilhos para a nossa mobilização e sim como o estopim para ela. Aceitar o EaD é pavimentar o caminho que já foi aberto rumo ao Future-se, é condenar o que resta de ensino superior público e gratuito à privatização completa. Portanto, além de rechaçar a chantagem do MEC aos estudantes e professores, neste momento devemos nos colocar ao lado da população, não recuando frente aos problemas sociais. Devemos colocar o nosso conhecimento e nosso trabalho a serviço disso e não ao lado da velha universidade, da exclusão e do genocídio silencioso do Estado. Devemos ter clareza de que é só com a nossa organização que resolveremos qualquer destes problemas. Isso é lutar por uma universidade verdadeiramente pública!
Se a voz dos estudantes não tem sido escutada nos espaços de mísera democracia da universidade, como os colegiados, departamentos, setores e conselhos, que gritemos aos quatro ventos: Nem um passo atrás na defesa do direito de estudar e aprender! Frente aos ataques à autonomia e democracia universitária, que visam golpear a gratuidade, nos manteremos firmes e seguiremos o exemplo dos estudantes chilenos que tem se levantado em combativos protestos contra essa imposição do FMI-BM!4 Este é o momento para fazer com que as pessoas não apenas percebam o papel que a mobilização dos estudantes tem na sociedade, mas lutem conosco por uma sociedade melhor.
24 de junho de 2020,
Centro Acadêmico Anísio Teixeira – UFPR